Esse texto possui spoilers sobre o novo episódio.
Escrito por: Pedro Rubens
Marcelo D2 diz em sua música ‘Tambor de Aço’, do álbum mais recente, que “suburbano vencedor, eu sei o que sou, ninguém me tira isso não”. Essa também é a canção de abertura de Cidade de Deus: A Luta Não Para e, talvez, seja a frase que mais corrobora com todo o enredo da série. Saber quem é, ter consciência de onde veio e aonde quer chegar, é vital para quem veio dos centros periféricos de um Brasil que enaltece os “pseudo-mocinhos” e apontam armas para aqueles que recebem a alcunha de vilões.
O último episódio da série que se passa 20 anos após os eventos do filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund chega de forma sucinta, colocando as coisas no lugar e apontando os rumos para o ano seguinte. Em contrapartida, o ato final da temporada se fundamenta na perspectiva construída sobre heróis e vilões. Isso é reforçado pelo próprio texto que, em dado momento, reitera: não há herói se não houver um vilão.
Nesse contexto, a trama desenvolve o arco político de Berê, quem agora encara de frente a realidade de ser uma mulher preta, favelada e que almeja um cargo político. A falta de verba para a campanha não é o suficiente para pará-la. Se há ausência de dinheiro, há abundância de fé, força e garra de que a trajetória vai ser recompensada ao final.
Enquanto segue na comunidade fazendo um trabalho orgânico em prol da eleição – e, consequentemente a vitória –, Berenice decide adentrar nos becos e nas vielas mais profundas da CDD. Inclusive, aqueles nos quais não são da sua “área”. O seu maior artifício é o povo e não há como vencer essa guerra nas urnas se não for através deles. A sua caminhada política é feita de mãos dadas, mostrando ao povo quem ele de fato é e de onde vieram. Afinal, não há poder maior do que a crença em si mesmo e não naquilo que dizem sobre você.
Ao trazer a comunidade para perto e engajá-la na campanha, outros arcos vão se desenvolvendo. MC Leka se resolve com seu trio na música e, juntas, compõem o jingle – lindo – para a futura vereadora e representante da Cidade de Deus. Por outro lado, o relacionamento com Buscapé – seu pai – escalonou e, agora, chega a um nível mais próximo de algo paterno. Esse pode não ter sido o arco com maior tempo e desenvolvimento em tela, mas é excepcional ver a maneira como as peças vão se encaixando e ambos vão se entendendo como pai e filha, derrubando muros e construindo pontes.
Junto a Lígia, Buscapé consegue novas informações sobre Gerusa com Rogério (Gustavo Engrácia), um ex-jornalista policial aposentado,que lhe ensinou tudo o que sabe sobre a arte da fotografia jornalística. A questão é que o pai da advogada de Bradock foi preso por transportar droga para Curió, sem saber o que estava transportando. Ao tentar se vingar pelo ocorrido com o pai, junta-se com os milicianos na caçada ao antigo líder da CDD e conseguem sua cabeça.
Porém, a duras custas, a dupla Lígia e Buscapé consegue lançar a matéria que revela a ligação do Secretário de Segurança do Estado com Zé Pequeno e anuncia para todos o romance vivido entre seu filho, Israel, e Gerusa, esposa de Bradock. O caos é instaurado e, como forma de acalmar os ânimos, Cabeça é afastado do cargo e precisa apenas apoiar e acompanhar a campanha política do filho, que segue insistindo que tudo aquilo é apenas uma tentativa de sujar sua candidatura.
Ao seu redor está Touro, um dos descendentes do grupo denominado A Mineira, que recebe ordens para resolver o problema chamado “Lígia-Buscapé”, após a matéria divulgada no jornal. Tal investida – a partir de balas e tentativas de assassinato – retorna ao fio condutor da série, bem como do episódio: quem é vilão e quem é herói?
Vivendo às escondidas, Gerusa reaparece para Bradock e, num gesto de rendição, arma para o seu antigo amante ao levar Geninho para resolver a rivalidade existente entre eles e a vingança que estava pendente pela morte de Curió. Aparentemente, o que ele não sabia era que aquela vingança não diminuiria em nada a dor de ter perdido o pai. Porém, o arco de Bradock se fecha para que o novo chefe da Cidade de Deus se erga.
Quando todo o circo está armado, finalmente chega o dia das eleições e o resultado esperado acontece: Israel vence, assim como Berê. Nesse ponto, a fé volta a se revelar como um dos alicerces do povo quando em uma fala simples, mas extremamente profunda, da mãe de Buscapé, que conta ter levado oferendas a Ogun como forma de pedir por justiça, proteção e auxílio nessa nova empreitada da candidata – agora eleita – a vereadora da cidade.
Diferentemente de tantas outras produções que se utilizam de metáforas para alegorizar o mundo real, Cidade de Deus: A Luta Não Para coloca o pé no chão, mais precisamente na lama das favelas, que é uma mistura de sangue e terra, para contar uma história fictícia mas alicerçada na realidade. Não há outra forma de contar uma história sobre o povo sem trazer para o centro do palco aquilo que há de mais precioso: o próprio povo.
O autoconhecimento e, sobretudo, a consciência de quem é e de onde veio é o que salva vidas e continuará salvando. É a partir do pertencer-se que a existência passa a ser não mais uma questão opcional, mas vital. Nesse ponto, a história passa a ser norteada não pela coexistência de heróis e vilões, mas encaminhada pelo ser. Simplesmente pelo ser.
E é justamente o senso de ‘ser’ que outorga Cidade de Deus: A Luta Não Para como um dos maiores lançamentos do ano. Urge a necessidade de reconhecimento e enaltecimento a essa obra! Porém, em uma sociedade que busca elencar os heróis e vilões, apontando os maiores e melhores em detrimento de tudo aquilo que afague o ego dos poderosos, não surpreenderia se essa fosse mais uma produção deixada de lado em listas e premiações. Afinal, quando se mexe com o status quo social, político e econômico, as coisas tendem a seguir o que diz a música de Nelson Cavaquinho:
“É o juízo final
A história do bem e do mal”
Entretanto, assim como prossegue a canção, que tenhamos olhos para ver a maldade desaparecer. E aqui, diferentemente da série, permito-me utilizar da primeira pessoa e do recurso da metáfora. Vida longa ao audiovisual brasileiro! Vida longa às Cidades de Deus que ainda virão por aí!
Nota: 9,5