Esse texto possui spoilers sobre o novo episódio.
Escrito por: Pedro Rubens
“O abutre ronda, ansioso pela queda” é o que diz um trecho de 'AmarElo', música de Emicida. Ao compor essa música, talvez a proposta não tenha sido nem falar sobre relações próximas que, assim como o abutre, rondam no aguardo da queda da sua presa para que assim possa superá-la. Mas utilizá-la nesse contexto não é uma fuga do tema, ainda mais quando se trata de Cidade de Deus.
No terceiro episódio da série, a disputa territorial entre Bradock e Curió é o fio condutor da narrativa. Mesmo que os personagens não troquem uma única palavra entre si, a interação acontece a partir de terceiros, vindo daqueles que os rodeiam e tomaram um lado na guerra. Em meio aos risos, bailes funk, dinheiro, tiroteios, ameaças e deslealdade, os abutres seguem rondando, à espera das carcaças.
A fundamentação para o desenrolar do novo capítulo de Cidade de Deus: A Luta Não Para vem já na cena que antecede os créditos: enquanto PQD anda na garupa de uma moto pelas ruas e vielas da comunidade, segurando um galo morto, ele se depara com Berê, sua ex-namorada, que agora entende de uma vez por todas o rumo que as coisas vão seguir. Porém, o animal morto é uma espécie de “presente de Grego”, tal qual Bradock havia enviado à Curió. Porém, agora era a vez de receber o seu.
Enquanto isso, Leca segue com seu sonho de crescer em meio ao funk carioca. Sua ida à região do Botafogo visa uma possível proposta para tocar em um “baile de branco”, o que lhe daria ainda mais visibilidade. Só que, mais tarde, a conta chega ao receber um contrato que lhe isenta de receber cachê na primeira apresentação dado que ele seria utilizado para divulgação. Focando única e exclusivamente na possibilidade de ascensão, a MC aceita e faz um show onde percebe que ali, talvez, não seja seu lugar e tampouco esteja seu público alvo.
Entretanto, dividindo espaço com as cenas de baile funk, luzes, cantoria, misoginia e homofobia, o roteiro nos leva de volta ao assunto da relação paternal conflituosa entre Leca e Buscapé. Ao sair da entrevista, a personagem e sua equipe precisam se abrigar na casa do fotógrafo, porque a Cidade de Deus está fechada, já que a guerra está de volta. É nesse ponto que fica evidente que há uma tentativa de pôr em pratos limpos aquilo que outrora gerou o desconforto entre eles.
Em uma cena milimetricamente pensada, onde pai e filha se perdem em divagações e afirmações ao observar fotos, Leca conta à Buscapé quem é o garoto assassinado e fotografado, ao sair da aula de música. Nomear personagens mortos brutalmente pela guerra é uma maneira da série homenagear - e lamentar - por todos aqueles que se perdem em meio ao caos que acontecem nas comunidades e se somam - ao mesmo que se perdem - aos números estatísticos. São esses dados que nos levam para a cena do núcleo político, onde o Secretário de Segurança afirma que chegou o momento da polícia intervir na Cidade de Deus.
Ciente disso, o fotógrafo está cada vez mais decidido a ajudar Lígia em sua matéria sobre As Mineiras. Ao reunirU material dentro do seu ambiente de trabalho, ajuda a jornalista a conseguir entrevistas com pessoas da comunidade que narram suas histórias e denunciam os abusos sofridos por aqueles que outrora eram os herois da comunidade. Na surdina, os abusos seguem acontecendo: impostos sendo cobrados em “prol da segurança”, casas sendo tomadas para serviço do bando, construções em área proibida e assassinatos por considerar cidadãos como bandidos. E, ao sair da igreja onde os relatos foram expostos, mais um abuso: Touro surge como uma ameaça para os jornalistas, que entendem imediatamentea investida do descendente das Mineiras.
Ao passo que todos esses arcos menores vão acontecendo, Cidade de Deus: A Luta Não Para fundamenta todo seu terceiro episódio na guerra travada entre Bradock e Curió, sendo este último auxiliado por táticas de guerra advindas de PQD. Em meio a estratégias, coletes a prova de bala, fuzis e muitos projéteis, a comunidade vai sendo retomada pelo antigo líder.
Em uma investida para capturar Ocimar, braço direito de Bradock, e levá-lo para Curió, as coisas começam a sair dos eixos. Zeroonze não consegue agir, mesmo quando está cara-a-cara com a sua presa, e começa a demonstrar certa instabilidade emocional - que, posteriormente, vem a ser explicada. O fato é que o braço direito de Curió estava fazendo uma dessas revistas aos carros que entram na comunidade e, por não ser atendida sua solicitação para parar, decidiu alvejar o automóvel. Dentro estavam Ocimar, sua esposa e filha. Essa última morreu de olhos abertos e, desde então, tem permeado seus momentos de assombro.
De fato, nessa guerra, os olhos que estão abertos terminarão por se fechar. Como num piscar de olhos, a sua vida poderá vir a ser ceifada, seja por uma bala perdida ou por um moleque, como Geninho, que chega atirando e não pensa em deixar ninguém vivo, afinal, como ele mesmo diz: “ninguém ali é policial para levar os outros detidos”.
Nesse ponto, Bradock já está afugentando da Cidade de Deus, fazendo pequenas intervenções e aparições na comunidade para solicitar ajuda de Berê, que nega veementemente e afirma que não tem mais relação com PQD. É aqui que Gerusa decide apostar suas fichas no ponto mais instável entre as gangues. Ao entrar na casa de Zeroonze e pegá-lo de surpresa, apresenta a ele a única saída possível para continuar com vida: ser o X9, aquele que vai passar informações sobre como Curió pode ser capturado.
A sequência final do episódio é de uma sensibilidade inigualável. Sem medo de arriscar a série encaminha o espectador para um dos momentos mais importantes da temporada. A montagem das cenas, a alternância das câmeras, os ângulos mais abertos e a trilha sonora correspondem à geração de expectativa ascendente em quem está vendo.
Ao sair da boca para ir de encontro à esposa e filha, que já não se encontram mais na comunidade, Curió caminha para seu destino. Em uma armadilha montada por Gerusa e Bradock, auxiliados por Zeroonze, a série agora perde aquele que sustentou a comunidade e, diplomaticamente, conseguiu organizá-la. Curió é alvejado na frente da casa, onde sua esposa e filha se encontram, morrendo aos pés da sua amada e com o álbum da festa de debutantes da sua caçula nas mãos.
Os tiros partiram de um Bradock, que demonstra em seu olhar, um misto de emoções. Medo, revolta, tristeza, ansiedade e satisfação permeiam os olhos daquele que deveria estar ali ao lado do seu pai adotivo, sem precisar ter atiçado toda essa guerra. Em meio a tantas baixas, Geninho consegue fugir, PQD teve o mesmo fim que seu patrão e Zeroonze, ainda vivo, aguarda um desfecho incerto por confiar em Gerusa.
Talvez os personagens da série tenham se apegado demais ao verso dos abutres e tenham enxergado que todos ao seu redor sob essa perspectiva. Infelizmente, esqueceram de ouvir o verso seguinte que diz:
“Findo mágoa, mano, sou mais que essa merda (bem mais)”
Cidade de Deus: A Luta Não Para não tem o menor medo de arriscar, seja ao assassinar um dos maiores personagens da trama ou ao avançar no processo de desenvolvimento de um novo ‘Zé Pequeno com sangue de Curió’, como é o caso de Geninho. As cartas estão dispostas na mesa, o tabuleiro já está pronto e, a qualquer momento, um novo xeque-mate pode acontecer. Mas, nessa guerra, quem será o próximo a cair: o abutre, o curió ou o galo?
Nota: 9,0