Esse texto possui descrição de alguns dos eventos da temporada.
Escrito por: Pedro Rubens
É possível aplicar em inúmeros contextos uma das suas canções mais conhecidas da banda Nação Zumbi. Na conjuntura de Cidade de Deus: A Luta Não Para, cantar “Posso sair daqui para me organizar / Posso sair daqui para desorganizar / Da lama ao caos, do caos à lama / Um homem roubado nunca se engana” é uma forma de evidenciar aquilo que Bradock fez questão de gritar no primeiro episódio – O alvará cantou! –, mesmo que ele talvez tenha optado por seguir cantando a canção da maneira errada.
O segundo episódio de Cidade de Deus: A Luta Não Para se passa a partir do dia seguinte ao assassinato de Valderrama (Bento Coimbra) e as consequências de tal ato. Todo o novo capítulo é uma mescla entre flashbacks de vários momentos da CDD, inclusive da festa de aniversário de Geninho, personagem representado por Victor Andrade na fase adulta, onde somos questionados acerca do que é família e as respostas vêm da interação entre Curió e o jovem Bradock.
Nos dias atuais, a relação entre Jerusa e o ex-chefe da boca da Cidade de Deus, e recém ex-detento, segue naquela tensão de paz armada. A qualquer momento essa bomba relógio pode, e vai, explodir – nós só não sabemos qual dos lados cairá. Como dito pelo personagem vivido por Thiago Martins à sua namorada, e advogada: “Você tá viva, Cris. Eu tô morto!”.
O medo acerca do seu futuro faz com que Bradock tome a decisão de organizar sua própria gangue e, para isso, corre em busca de ajuda de Ocimar (Eduardo “Br”), também conhecido como o maioral das rinhas de galo e inimigo de Curió. Essa nova aliança promete não apenas a retomada da boca que um dia lhes fora de direito, mas a queda daquele que atualmente lhe coordena e, consequentemente, detém o poder – diplomaticamente – da comunidade.
Ao passo que tais eventos se sucedem, uma nova jornalista que chega da Espanha pede ajuda ao Barbantinho para investigar e denunciar a máfia da CDD. Lígia (Eli Ferreira) levanta o questionamento sobre heróis e bandidos, enquanto mais um flashback dos anos 1970 nos mostra que ali haviam os “heróis” que matavam para proteger o povo, denominados de As Mineiras, porque garimpavam o ouro da criminalidade. O contraponto à isso tudo é que esse grupo ainda segue nas coxias da Cidade de Deus comandando todas as coisas, mas sem deixar vestígios.
É nesse ínterim que a jornalista decide instalar uma ONG na comunidade para ensinar informática às crianças. Para isso, ela precisa falar com Touro (Otavio Linhares), uma espécie de líder da comunidade, que ajuda com informações de aluguel, distribuição de água, gás e afins. O que tal “benfeitor” não esperava é que a ajuda viria da Igreja e, por isso, decide levantar dúvidas acerca da moralidade do pároco e enaltecer o legado do seu tio – um antigo herói da CDD da década de 1970. Somando 1+1, temos que Touro é mais um herdeiro das Mineiras.
Em uma cena bem “anos 2000”, enquanto Curió e sua família escolhem as fotos que Buscapé fez no baile de debutantes de sua filha, Zeroonze (Rafael Losso) chega com a notícia da morte de Valderrama. A partir daí, Barbantinho decide intervir na tentativa de reconciliação entre o atual chefe da boca e o assassino do seu comparsa. E é aqui que chega o presente de grego.
Uma criança assustada segurando uma caixinha bate na porta, informando que a entrega é para Curió. Quando questionada sobre quem mandou, o silêncio reina. O medo grita nos olhos do pequeno. Ao abrir a caixa: um pássaro morto. O mesmo que dá nome ao novo chefe da Cidade de Deus. Em meio aos gritos de ordem para fechar tudo e todas as coisas na comunidade, a guerra começa.
A sequência que se desenvolve a partir deste ponto é de uma sensibilidade invejável. Portas de estabelecimentos sendo arrastadas, janelas se fechando e feirantes recolhendo seus produtos. Enquanto isso, a trilha sonora da aula de violino, que precisou ser interrompida na metade, segue compondo a cena da guerra na CDD. Sem extrapolar nenhum limite, a série consegue compor um momento extremamente pesado, mas de maneira delicada.
Nesse contexto, PQD (Demétrio Nascimento), namorado de Berê, demonstra interesse em se envolver na guerra. Não precisa de muito tempo de diálogo para perceber que o ex-cabo do exército sente falta do combate e vê-se paralisado por não fazer nada naquele caos que se instaurou ao seu redor. O que ainda o impede, mesmo que momentaneamente, é a fala incisiva da sua companheira que insiste que, caso entre para o combate, ele estará fora da sua vida.
Em um breve momento de trégua, quando os tiros cessam e as crianças tiram os fuzis das mãos, a mídia noticia o ocorrido e voltamos ao núcleo político da série. Em uma cena curta, vemos Israel e seu pai debatendo sobre qual o momento certo para uma intervenção, enquanto, no Comando Policial, o delegado solicita que Delano seja seu informante acerca de quem, e o quê, está sendo planejado para a CDD.
Desde os primeiros momentos do episódio, fica evidente que Buscapé permeia todos os momentos na Cidade de Deus. As suas lentes narram uma festa de debutante ao mesmo tempo que mostra o horror de uma criança sendo assassinada. Sua relação com Leca piora a cada novo encontro, mas uma frase dita pela primogênita cria raízes na sua cabeça e encontra terreno fértil para crescer: “já passou da hora de você parar de vender no mercado a carne negra”.
Ao procurar vida na Cidade de Deus, o fotógrafo se depara com a guerra e acaba encontrando a morte e sua câmera sai distribuindo cliques. A sensação que o personagem deixa é de que ele morre a cada nova foto que denuncia o real estado da comunidade, atraindo mais mortes para lá. Como tentativa de se perdoar e reverter tudo o que já fez, opta por ajudar Lígia e buscar informações nos arquivos do jornal para o qual trabalha.
Os momentos finais do episódio são, novamente, repletos de mais guerra e trama política. Curió não foge à luta, mas ao se esconder, é encontrado por Bradock, que mira diretamente no antigo “pai adotivo”, porém não consegue consumar o ato. Ao conseguir retomar aquilo que é dele, opta por tentar uma trégua entre os dois. Entretanto,é aconselhado por sua namorada e Ocimar de que é preciso cortar o mal pela raiz. É aqui que descobrimos que o presente de grego não partiu de Bradock.
Enquanto finge que aceitou a trégua, Curió ordena que a comunidade volte ao normal, o que é apenas como forma de resguardar-se até conseguir se reestruturar. No Baile da CDD, a divisão de gangues começa a atingir outros limites, quando do lado de fora um civil é agredido ao ser confundido com alguém que anda com Curió e, ao tentar ajudá-lo, PQD é ameaçado. Foi a gota d’água, agora ele tem um lado e sabe o que precisa fazer.
Nos minutos finais, ao oferecer uma estratégia a Geninho e Curió, o ex-soldado do Exército ganha a confiança de alguém que já comandou tudo ali e que busca se reerguer. Comprando novas armas, iguais ou melhores do que aquelas que Bradock dispõe, o antigo chefe da boca mostra que está pronto para acabar com o seu “ex-filho adotivo”.
O segundo episódio de Cidade de Deus: A Luta Não Para leva o espectador para o coração da CDD e nos permite sentir a lama misturada ao sangue ocasionado pelo caos da guerra. Com o caminho bem definido, a temporada promete não ter medo de colocar o dedo na ferida e externalizar os dilemas sociais enfrentados nas comunidades brasileiras.
A primeira temporada de Cidade de Deus: A Luta Não Para terá 6 episódios e o segundo já está disponível na Max. E se você ainda não soube, a série já está garantida para sua segunda temporada!
Nota: 9,0