Esse texto possui descrição de alguns dos eventos da temporada.
Escrito por: Pedro Rubens
Em seu livro ‘História do cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno’, Mark Cousins apresenta momentos importantes da história da sétima arte, desde os primeiros passos que culminaram no seu nascimento aos filmes que marcaram a história mundial. Em uma página dedicada ao cinema brasileiro, é possível ver um garoto preto, vestido com uma camisa cor de mostarda, um sorriso estampado no rosto enquanto segura uma arma apontada para alguém. Era Dadinho. Amigo de Zé Pequeno. O filme é Cidade de Deus (2002).
Cidade de Deus: A Luta Não Para, nova série original HBO, se passa em 2004, 20 anos após os eventos que mostraram como chegou ao fim a história de Zé Pequeno e seus companheiros. Agora, pelas lentes de Buscapé, um dos maiores nomes da fotografia jornalística do Rio de Janeiro, conhecemos a nova realidade da CDD, como é carinhosamente apelidada a Cidade de Deus.
No filme de 2002, temos acesso ao caos instaurado na comunidade a partir da guerra entre policiais e facções – e agora não é diferente. O que outrora foi contado a partir da perspectiva do desenvolvimento de personagens, desde suas respectivas infâncias à vida adulta, e consequentemente seu desfecho, aqui não se repete. Na nova produção nacional temos um enredo muito bem instaurado e consciente de que a história se passa e constrói no presente, mesmo que com todas as consequências advindas do passado.
O episódio já começa com referência à clássica cena de perseguição da galinha. Em contrapartida, essa tal trilha se multiplica e divide a tela entre a morte de um animal, capaz de alimentar aqueles que estão famintos em casa, e saciar a sede de sangue daqueles que não aceitam que sua autoridade seja questionada e buscam justiça quando suas ordens são descumpridas. Talvez, desde o primeiro ato em que vimos uma ave fugindo da sua morte, estivéssemos diante de uma grande metáfora para ilustrar a realidade daqueles que fogem dos “defensores da lei”.
Enquanto narra a introdução do episódio, Buscapé (Alexandre Rodrigues) segue um bando de policiais do BOPE adentrando pelos becos e vielas da CDD para prender e “cobrar arrego”. As cenas vão se intercalando e o ritmo acelerado coloca o pé no freio para manifestar ao público qual a nova ameaça, apresentada como pessoas com “cara de polícia, arma de polícia e paga de polícia”. Essa é a maneira como a produção encontra para diferenciar que, agora, a intimidação vinha daqueles que não eram mais os bandidos de outros tempos, que usavam facas e canivetes ou que andavam fardados e com distintivos pendurados.
Se o tempo na rua faz com que os cidadãos das comunidades se acostumassem com as atrocidades vistas ali, o jargão do meio jornalístico cai como luva para corroborar com isso e com a história do protagonista: ele agora é um cara cascudo. Porém, ao passo que o episódio avança, percebemos que isso é uma das fraquezas do personagem, que já se acostumou a ser chamado de Wilson, seu nome de batismo, enquanto luta, a duras custas, para que os moradores da comunidade abram mão de chamá-lo pelo seu apelido, Buscapé.
Entre tantos dilemas, como a dificuldade em se relacionar com a filha funkeira, a falta de fé do personagem vivido brilhantemente por Alexandre Rodrigues apresenta-se muito timidamente e pela surdina mas, de certa forma, auxilia na condução da narrativa. Durante o episódio, elementos que referenciam o candomblé, como búzios e guias, são o suficiente para mostrar que, em Cidade de Deus: A Luta Não Para, o fundamento religioso será constante e um dos autores do enredo.
O background onde Buscapé se encontra é recheado de velhos rostos conhecidos. Barbantinho (Edson Oliveira), agora é candidato a vereador e deseja mostrar uma nova face da CDD; Cintia (Sabrina Rosa) dedicou-se à criação e manutenção de uma associação que ajuda os moradores da comunidade; Berê (Roberta Rodrigues) não conseguiu viver longe daquele que é seu lar e voltou para cuidar dos seus – é a mãezona que opta por bater para que a polícia não bata; Bradock (Thiago Martins), ex-chefe dos Caixas Baixas, preso por assumir uma culpa que não é sua e posteriormente solto.
Ao mesmo tempo, nem só de personagens e dilemas antigos se sustenta a série. Delano (Dhonata Augusto), é um policial e professor de jiu-jitsu; Curió (Marcos Palmeira) assumiu o manto de novo chefão da Cidade de Deus, considerado um grande diplomata; Jerusa (Andréia Horta) é a advogada corrupta que consegue o alvará de Braddock; Reginaldo e Israel Cavani (Kiko Marques e Rafael Lozano) são, respectivamente, um ex-policial que agora é Secretário de Segurança do Rio de Janeiro e seu filho, que prometem ficar no encalço da bandidagem – mesmo que, para isso, precisem tomar atitudes minimamente duvidosas.
Todavia, quando “alvará canta”, é preciso comemorar e nada mais justo do que aproveitar a oportunidade de um baile de debutante para proporcionar o encontro do ex-dono da boca com o atual. O reencontro entre Bradock e Curió é cheio de familiaridade, abraços e emoção. Entretanto, em nem ao menos esperar os presentes degustarem do seu retorno, o ex-presidiário já reivindica seu posto e solicita retornar aos trabalhos. Aquele era, de longe, o pior momento para essa conversa, afinal, a aniversariante era filha do atual chefão da comunidade e ele só queria comemorar a vida da sua caçula.
Por achar que a conversa havia ficado pela metade, os personagens são colocados a postos em um jogo de futebol e o confronto é retomado. Em meio às insinuações e acusações de ambas as partes, fica evidente que o caos foi instaurado, mas toda família que se preze passa por dificuldades e desavenças, não é? Porém… Será que aqui temos uma família?
Em seus momentos finais, o episódio nos mostra outra faceta dos novos e velhos personagens. Jerusa, Bradock, Curió e Geninho ganham mais profundidade a partir das escolhas que tomam na busca por resolução às suas demandas. Ao som de ‘Juízo Final’, canção de Nelson Cavaquinho, o primeiro episódio da nova produção nacional da HBO entrega coesão, roteiro, atuação, desenvolvimento e fundamentação ao passo que dita as regras daquilo que podemos esperar para o decorrer da temporada.
Tal produção suja os pés na lama das comunidades e insere o espectador quase que sinestesicamente nas vielas labirínticas que abrigam pessoas amedrontadas e que, por dividir espaço com o medo, muitas vezes, querem apenas chegar com vida ao final do dia. Cidade de Deus, filme e série, não são apenas mais uma obra no catálogo nacional. É a realidade esquecida que se coloca diante de nós quando escolhemos fechar os olhos para aqueles que estão ao nosso lado.
Por isso, é cabível afirmar que Mark Cousins foi certeiro ao destacar uma página do seu livro em referência ao personagem vivido indescritivelmente por Douglas Silva no filme de 2002. O que a obra original fez, e ainda faz, é digno de toda ovação possível. Em meio a tantos filmes que poderiam representar o cinema nacional, esse certamente estaria no Top 5 de melhores representantes.
Agora, Cidade de Deus: A Luta Não Para volta como uma grande ode ao audiovisual brasileiro e, em pouco tempo, aquieta aqueles que assustaram-se com a possibilidade de macular algo tão precioso do nosso acervo cultural. Por outro lado, tal produção assume a responsabilidade – talvez despretensiosa – de elevar o nível de produto realizado internamente. Cientes de que é possível tocar naquilo que é intocável e prosseguir com aquilo que, aparentemente, já havia consumado seu último ato, ousemos parafrasear o que diz a canção de Cavaquinho e gritemos à plenos pulmões:
“Quero ter olhos pra ver
Mais produções audiovisuais brasileiras acontecerem!”
Nota: 9,5