Escrita por: Pedro Rubens
Em uma de suas letras mais icônicas, ouvidas e até faladas, Tim Bernardes diz que “a dor do fim vem pra purificar, recomeça”’. Aplicando isso à vida, talvez a ideia de colocar pontos finais seja descabida, indecente… Porém, o que fazer quando a vida exige desfechos para os inícios e partidas para os encontros?
Pedaço de Mim, nova obra nacional da Netflix, segue a história de Liana a partir da descoberta de uma traição. Ela engravida de gêmeos, mas é revelado que eles são de pais diferentes, o que é um caso raro de superfecundação heteroparental. Enquanto um dos pais é seu marido, o outro é alguém de seu passado.
Num país onde o carro chefe do mercado audiovisual são novelas, um enredo deste é facilmente encaixado em um folhetim da maior emissora nacional. E é curioso pensar que a obra criada por Ângela Chaves, dramaturga que já trabalhou para a Rede Globo em roteiros e colaborações de novelas como Celebridade, Páginas da Vida e Em Família.
O tom novelesco se faz presente em todos os episódios, mas é fácil distinguir que não estamos assistindo uma produção televisiva. Isso foi feito especificamente para streaming, com o objetivo de alcançar um número gigantesco de assinantes e, consequentemente, espectadores.
Desde o seu primeiro momento, Pedaço de Mim se apresenta como uma série que não tem medo de arriscar e sabe que não há tempo a perder. Cada episódio deixa um gancho gigantesco que nos prende ao ponto de só conseguirmos parar quando o 17º episódio termina.
A tríade protagonista é impecável! Juliana Paes entrega a atuação da sua carreira. Dificilmente seu nome será lembrado primariamente como outro personagem que não este. Liana é feroz, poderosa, imponente e domina a tela em todas as cenas que aparece. Ao mesmo tempo, essa mulher grandiosa apresenta falhas, fraquezas, medos e uma constante insegurança consigo e com o mundo ao seu redor, o que é completamente justificável dado o trauma que passou.
Caminhando lado a lado, Vladimir Brichta se entrega de tal forma que, talvez, entre para a lista de melhores atores da sua geração. Não há brechas para defeitos, não há erros. A dedicação do veterano é tanta que, por inúmeras vezes, a raiva se sobressai e gera um desprezo total quando ele aparece em tela. Ao mesmo tempo, Felipe Abib é asqueroso como Oscar, nojento no mais profundo significado da palavra e propõe, em cena, um dos personagens mais repugnantes possíveis.
Enquanto lida com o núcleo principal e o segredo guardado por tantos anos, a série cria subtramas que vão se conectando de tal forma que cria uma tapeçaria de primeiríssima qualidade. O núcleo de Sílvia, personagem da maravilhosa Paloma Duarte, e seu filho Inácio, interpretado por Vitor Valle, é impecavelmente bem trabalhado. Enxergar os dilemas de uma mãe superprotetora e workaholic, no processo de criação de um filho que apresenta redução da capacidade visual é algo delicioso de se acompanhar. Que trabalho tão bem elaborado vemos aqui!
Ao mesmo tempo, Pedaço de Mim nos insere em um cenário já conhecido de tantos outros produtos televisivos, bem como aplicados e vivenciados na vida real: o processo de ressocialização de indivíduos a partir do bom comportamento em cárcere e sua reinserção na sociedade como pessoas convertidas ao protestantismo, conservadorismo e com indícios políticos. Aqui, todos os aplausos são dignos. O Brasil se escancara diante dos nossos olhos e vemos aquilo que é tão corriqueiro no país.
Mas o que mais chama atenção na nova aposta da Netflix é a capacidade de utilizar-se das fraquezas dos personagens como força motriz no processo de conduzir histórias. Pedaço de Mim é poderosa pelo que é. Por si só, ela é um somatório de inúmeras catástrofes sociais que causam medo, dor, assombro e outros tantos sentimentos conflituosos. O xis da questão é que essa é uma produção que enxerga o copo meio cheio, e não meio seco.
Colocar o dedo em tantas chagas da sociedade com cautela, preocupação e, ao mesmo tempo, animosidade em prol de cura, é algo que pouquíssimas vezes vimos. Aqui, estamos diante de um exemplo disso. Enquanto apresenta a dor, ela indica o caminho do alívio. Por toda a temporada, a série anda na linha tênue entre o preço da verdade e da mentira, ou da omissão, de tal forma que constrói uma história que nos chama à mesa, convidando-nos ao diálogo.
Em seus 17 episódios, Pedaço de Mim ensina pedagogicamente sobre amor, família, amizade, cumplicidade, lealdade, sociedade, política e religião. É engraçado pensar que tudo isso poderia ser muito bem elaborado em tantos outros episódios caso caísse nas mãos de uma emissora de TV e virasse uma novela das 19h, 21h, etc. Porém, aqui temos a prova de que não é quantidade de capítulos que faz uma boa história, pelo contrário, narrativas não precisam de prolongamentos para serem significativas ou marcantes.
Não pelo método ou resultado, porém, encontrar na dor o fármaco para a cura é um feito para poucos. Talvez a urgência em contar uma história como essa seja reflexo da urgência em evidenciar onde estamos como sociedade. O plot de cada fim de episódio é aquela mãe que segura em nossa mão e instiga à descoberta de algo novo, de respostas necessárias e emergenciais. Logo, ficamos cientes de que precisamos de tantas outras produções nesse mesmo nível.
Pedaço de Mim não é nada despretensiosa, e que bom por isso! Enfrentar a verdade dói, seja você vítima de um abuso sexual, uma pessoa que foi enganada por toda a vida ou alguém minimamente sensível às dores da sociedade. Porém, como muito bem diz Tim Bernardes na música que encerra a temporada:
“A dor do fim vem pra purificar
Recomeçar”
Nota: 8,76